Andando pelo pátio de uma escola estadual de ensino médio, tenho a surpresa de observar que as portas dos banheiros feminino e masculino são identificados pelas marcas da Mulher Maravilha e do Super Homem. É o caso de rir por dentro! As imagens expressam anseios de adolescentes e jovens de tornarem-se mulheres e homens plenos, potentes e decisivos nas situações que enfrentarão.
O lugar é a Escola Luiz Martini, em Mogi Guaçu, São Paulo. Objetivo: conhecer a experiência de tutoria realizada simultaneamente ao ensino convencional, inspirada na experiência da Escola da Ponte e implantada com apoio e orientação do professor José Pacheco.
Sei que desde 2018 a unidade saiu de um estado física e psicologicamente precarizado, que chegara a registrar casos de violência e consumo de drogas por parte de alunos. Mas esse passado parece distante. É imediato perceber que instalações e relações pessoais demonstram vitalidade. Além da limpeza e da manutenção em dia, os espaços têm intervenções e contribuições dos estudantes. Arte nas paredes, horta coletiva, troca solidária, presença de voluntários, ex-alunos contribuindo com projetos culturais.
Concluo que a Luiz Martini está viva e potente.
A primeira etapa é conversar com os estudantes que participam da tutoria, e para isso faz-se uma roda de conversa. A diretora nos apresenta e explica que a adesão dos professores e estudantes à proposta de tutoria é opcional, e antes de deixar a sala coloca à vontade quem quiser participar para contar o que pensa a respeito.
São 15 desses tutorandos que se dispõem a participar da roda, conduzida em parceria com Helô Bueno, professora e voluntária na Luiz Martini e em outras escolas da região. Fazemos nossas apresentações. Somos ativistas da educação pública e da educação inovadora, e gostaríamos de saber as opiniões deles sobre a tutoria.
Mal começo a anotar o que dizem, observo a horizontalidade na comunicação. Os estudantes podem simplesmente se ausentar, mas se dispõem a compartilhar generosamente suas impressões. Expressam-se com clareza e combinam entre eles de quem é a vez. Interrupções, quando há, são causadas pela oportunidade e o entusiasmo e não pela vontade de aparecer ou prevalecer; e findam pela devolução da palavra ao interrompido.
Em sintonia com essas atitudes, grande parte dos relatos dos estudantes passa a mencionar a qualidade das relações estabelecidas com os tutores, as possibilidades da conversa individualizada, a atenção dada à situação de cada um.
Passo a anotar as falas dos estudantes:
- Na tutoria a gente se expressa melhor do que na sala de aula.
- O tutor acompanha cada um conforme sua evolução, enquanto na sala de aula o professor tem que dar atenção a todos ao mesmo tempo.
- O ensino “normal” atrapalha muito o interesse, já na tutoria se cria um vínculo pessoal com o tutor.
As diferenças nas relações com o conhecimento aparecem de forma contundente.
- A gente não gostava da escola rígida anterior e depois da tutoria passamos a ter interesse em estudar.
- Inicialmente estava conectada a uma determinada perspectiva profissional, e meus projetos avançaram bastante; mas agora me sinto mais feliz e evoluindo ainda mais no aprendizado em outra área.
- Estou muito feliz com o que aprendi sobre derme e epiderme! Tem aplicações na estética, e envolve química, biologia, física das cores…
- Encontrei uma questão que envolvia matemática e fui pedir ajuda a um outro professor que não é tutor… Ele ficou surpreso com o que estou aprendendo…
- A tutoria permite perceber nossa evolução! Uma simples prova feita num dia não pode servir para avaliar um semestre inteiro de estudo, pois no dia da prova o aluno pode não estar bem…
Sobre as condições da escola para oferecer a tutoria e a relação com o formato de aula surgem demandas e ressalvas.
- A tutoria poderia ser à tarde? A mudança do horário da escola não foi totalmente favorável.
- Algumas vezes senti que o tutor não tinha disponibilidade, pois tinha outros afazeres.
- Houve problemas mas a tutoria foi muito positiva.
- Alguns colegas parecem não se adaptar à ausência de aulas, não aproveitam a liberdade para se desenvolver…
- Outros professores poderiam se animar a se tornar tutores se conhecessem os resultados. Que tal se forem convidados a assistir às nossas apresentações?
Ganhos significativos da experiência como tutorando são a valorização própria e o exercício da autonomia.
- Incrível é a gente poder falar e ser ouvido…
- Na tutoria a gente se habitua a ser protagonista e assumir ganhos e perdas.
- Conversei com minha amiga numa ocasião que ela não estava tendo acesso ao tutor, e comecei a fazer as perguntas e questionamentos que ele faria! Quando percebi, estava sendo tutora também!
Exemplo de como a liberdade cria possibilidades é a parceria entre duas amigas, com interesses distintos (em engenharia civil e em arquitetura), unidas num projeto comum para espaços subutilizados da escola. O resultado é uma planta em três dimensões consolidada em um vídeo que está em https://photos.app.goo.gl/KWSTon2yYa4hvAo49.
Mas no plano do valor pessoal uma frase sintetiza todas as demais:
- Antes eu pensava que precisava me formar pra ser alguém na vida. Com a tutoria pude compreender que eu já sou alguém na vida!
Em se tratando de estudantes do Ensino Médio, o assunto Enem não poderia faltar. A pressão pelo ingresso no ensino superior é percebida por todos, mas há uma consciência difusa de que os conhecimentos para “passar no Enem” estão num plano diferente dos adquiridos na experiência da tutoria, na qual são internalizados e vivenciados de forma única e intensa.
- Eu decidi sair da tutoria para me dedicar ao Enem.
- Creio que é possível compatibilizar Enem e tutoria, se a gente se organizar.
- O problema é que aprender somente para fazer Enem nos faz odiar a matéria…
- O Enem está todo errado! Tem que mudar inteiramente!
A frase do jovem a respeito do Enem sai de forma espontânea, numa conclusão lógica e ao mesmo tempo cheia de convicção, indignada e questionadora. Imediatamente me vêm à lembrança os símbolos dos heróis nas portas dos banheiros.
O tempo disponível se esvai rapidamente, mas essa ousadia da frase final permite ensaiar conclusões. Os alunos que passaram pela experiência da tutoria demonstraram evidências de aprendizados, conexão à realidade e desenvolvimento socioemocional. Ponto culminante para um educador, sentiram-se potentes para enunciar vontades tão diversas quanto transformadoras: reformar as relações na escola, mudar as aulas, repaginar espaços e, enfim, munidos de forças descomunais, rever o Enem - e a própria sociedade que o instituiu como marco na avaliação de aprendizagem.
A saga desses jovens está recém iniciada. Mas eles já sabem da existência de seus superpoderes, e apenas começaram a desenvolvê-los.